Era uma vez, em meados de 2009, eu era bem novo, recém chegado na pequena cidade de São Lourenço-MG, para administrar uma lanchonete no Parque das Águas da cidade. A equipe era grande, e dentre os produtos que vendíamos, existiam três carrinhos que rodavam pelo parque inteiro, vendendo picolés. Normalmente, eram contratados adolescentes em busca do primeiro emprego, para fazer essa função, ganhando comissão sobre as vendas.
Os meninos que exerciam essa função vendiam bem, tinham um rendimento bem satisfatório, e em determinado momento, ouvi comentários entre a equipe: "os garotos são bons, mas igual ao Teté, não existia, ele era uma lenda. Nunca vi ninguém vender como ele, sozinho, ele vendia mais que todos os garotos juntos". Assim que eu soube disso, comecei a me interessar por esse sujeito, afinal, se existia uma lenda mesmo, eu queria conhecer com os próprios olhos e queria ele trabalhando pra mim. Soube que era mais velho, acima dos 40 anos, e havia trabalhado por alguns anos lá, e por alguma razão, saiu e nunca mais havia voltado.
Como eu adorava histórias como essa, comecei a tentar contato com o tal Teté. A equipe conseguiu o contato, mas me informou que o famoso vendedor de picolés, não tinha a intenção de voltar. E sempre que podia, eu insistia, mandava recado, pedindo que ele viesse pessoalmente conversar, e nada acontecia. Até que passado um tempo, em um dia tranquilo, um rapaz apareceu dizendo que queria falar com o novo dono, e eu respondi que era eu.
O rapaz deu a gargalhada costumeira dele e falou:
- "Não, eu quero falar com o dono, o sr. Victor, deve ser seu pai", e já sem paciência, contrariado eu falei:
- "Sou eu mesmo, não sou senhor nenhum, só Victor, prazer".
Foi então que ele com aquele sorriso debochado, apertou minha mão e se apresentou como o Teté, vendedor de picolé. Conversamos, ele tinha um jeitão todo próprio, lembrava o personagem Chaves, usava boné do Flamengo, seu time de coração, torcedor fanático; marrento, brincalhão; nas horas vagas, gostava de beber "uns goró", segundo ele, fazer uma "fézinha no jogo do bicho" e ficar acompanhando o jogo de bocha . Era metódico, um dia antes queria levar o uniforme para casa, lavar, passar; lavava o carrinho dele na véspera, tinha que estar brilhando, ter o guarda sol mais bonito que tivesse, onde ele prendia o radinho de pilha para ir "ouvindo os modão", colava um monte de adesivo do escudo do Flamengo, prendia uma buzina de bicicleta, levava o troco na pochete, e não usava calculadora, fazendo todas as contas e dando o troco "de cabeça", sempre certo, não errava (mas que ele não saiba que contei, não usava calculadora também porque não enxergava os números pequenos, e se recusava a usar óculos, segundo ele, coisa de "véio").
Nunca me apresentou a xerox obrigatória de seus documentos, e sempre dizia que se eu quisesse saber sobre ele, era só perguntar pra "turma", pois todos o conheciam, se resumia a dizer que o nome era Paulo Henrique, falando o nome sempre bem baixinho, afinal, era Teté o nome dele. Era um homem de palavra, afirmando sempre que "se falou, tava falado". No primeiro dia de trabalho, percebi que ele era diferenciado, eu nunca tinha visto nada igual, mas eu não o elogiava muito publicamente, senão ele se acharia ainda mais!
Chegava no fim do dia, ele perguntava:
- "E aí patrão? Foi bom ou não foi? Tá feliz?"
Eu tentava segurar o riso (e nunca conseguia) e falava pra ele:
- "Já vi melhores, mas dá pro gasto"
Naturalmente, o tempo passou, e nos tornamos grandes amigos, era um prazer imenso trabalhar ao lado dele. Com o tempo, ele vendia tanto e tinha intimidade para falar comigo, então me pediu que deixasse apenas ele vendendo, pois dava conta do serviço sozinho e passaria a ganhar mais. Não tive como negar, afinal, em um dia ele vendia o mesmo que os colegas mais novos vendiam o mês inteiro. Só que abusava as vezes, ele era bom e sabia disso, aí começava a chegar atrasado, saía mais cedo, tinha regalias por ser "o craque do time", "não treinava, mas na hora que a bola rolava, adivinha quem decidia o jogo?".
Em uma das passagens engraçadas que me lembro, já havia passado toda a parte da manhã, e onde estava Teté? Nada, nem sinal dele! Liguei pra ele e perguntei:
- "Ôh Paulo Henrique, cadê você?" , eu só falava o nome real quando ficava bravo com ele.
- "Ah Victor, aqui em casa eu vi que tava ameaçando chover, aí achei melhor largar mão e não ir", dizia ele.
Eu já conhecia a peça, e falava:
- "Então, vou emprestar o seu carrinho para um menino que tava aqui me pedindo oportunidade pra vender picolé".
Na mesma hora ele dizia que já estava chegando, pra não deixar ninguém mexer nas coisas dele. E o pior, em metade do dia, ainda assim, o malandro vendeu uma quantidade absurda de caixas e mais caixas de picolé, compensando todo o período que faltou pela manhã. Exigente, uma vez ficou irado quando descobriu que um vendedor concorrente ia ganhar uniforme novo e um carrinho-bicicleta, podendo trabalhar pedalando, sentado, e ele lá, empurrando carrinho. Reclamou tanto na minha cabeça, que eu tive que endurecer com o fornecedor para arrumar todo equipamento igual para ele; quando chegou, os olhos brilhavam como uma criança ganhando um brinquedo novo, ou da mesma forma que ele mesmo ficava sempre que eu trazia de presente qualquer adesivo, camisa, boné, chaveiro, caneta ou qualquer coisa com o símbolo do Flamengo, ou é claro, quando ele falava sobre o amor e o orgulho que tinha pela família dele. Com o carrinho-bicicleta em mãos, ele corria e dava voltas no mesmo lugar, como um garoto que ganha a primeira bicicleta, com um sorriso de orelha a orelha, derrubou até algumas cadeiras da lanchonete no dia, fazendo estripulia.
Foi uma parceria longa e de sucesso. Mas certo dia, eu decidi que gostaria de mudar de emprego, visto que aquele trabalho de administrador da lanchonete era cansativo e estressante, minha saúde não estava legal, então eu precisava parar. Me lembro que Teté ficou "emburrado" comigo por semanas, falando que eu não podia vender a lanchonete, que eu ia abandonar os amigos, até que foi obrigado a aceitar a ideia, e no último dia de trabalho juntos, a gente se despediu como de costume, e ele disse que não gostava de despedidas, então naquele dia, ele ia embora sem olhar pra trás, não gostava de choradeira e a gente iria se ver por aí. Nos encontramos algumas vezes depois, era sempre uma alegria, gargalhadas, gostávamos muito um do outro, e ele vivia espalhando por aí que patrão igual a mim não existia, que já teve bons patrões, mas que eu era o "melhor patrão que ele teve".
Enfim, são inúmeras histórias juntos, muitas conversas, muito aprendizado, eu levaria semanas para contar tudo, Teté é o tipo de amigo marcante, que você leva para a vida inteira.
E por que estou contando essas histórias, bem agora? Algumas pessoas com a voz embargada me ligaram dizendo que você partiu, meu amigo. Como assim cara, sem nem avisar? Eu não consigo acreditar, tenho a sensação de que isso é mais uma das suas brincadeiras. Mas de toda forma, para garantir, sei que uma lenda só morre caso quem tenha presenciado sua história genial, não fale a respeito, ou não registre isso de alguma forma. Lendas jamais morrerão, pois uma vez que suas histórias forem contadas, lendas se tornam imortais.
Então essa função cabe a mim, meu amigo, eu sou a prova viva, eu presenciei com meus próprios olhos a lenda do maior vendedor de picolé que já existiu em todo o Sul de Minas Gerais, mesmo disfarçado as vezes de porteiro de escola, alugando brinquedos na praça ou vendendo outras coisas, está aqui registrado a sua real vocação, que você amava fazer, ainda mais naquele paraíso, aquele parque que você tanto amava, e aqui está explicado o seu status de lenda; e nem adianta falar que preciso de provas, pois como você, sou um homem de palavra, "se falei, tá falado".
Não gosto de despedidas também meu amigo, então prefiro virar de costas e não olhar para trás te vendo embarcar. Boa viagem meu amigo Teté, espero que em algum parque bem bonito e florido, você continue sendo essa alegria para todos, permanecendo feliz e quem sabe, ainda tenha uns picolés por aí, mas não precisa mais vender, basta ficar contando as prosas boas de sempre. No final da vida, daqui a muitos anos, eu chego para te visitar, guarda um La fruta de Morango pra mim, aquele azedo, que você sabe que eu gosto. Até breve meu irmão, que Deus e sua tão amada Nossa Senhora te acompanhem sempre. Acha que eu tô chorando? Me erra rapaz, uso lente e só caiu um cisco no meu olho, ahhhh, vai arrumar o que fazer! A gente se vê por aí...
Ass: "O melhor patrão do mundo" coisa nenhuma, e sim, o amigo fiel do melhor vendedor de picolé que já existiu, a lenda!
Texto em homenagem ao querido amigo Paulo Henrique da Silva, o Teté:
In memorian:
19/06/1965
12/06/2018